quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

a vantagem de ser ninguém

"Ai! meus amigos, é NINGUÉM que me mata, é NINGUÉM!" - «Então, dizem eles, se ninguém te faz mal, de que te queixas? O teu mal não tem remédio, e não lhe sabemos a causa. Tem paciência e sofre com resignação...»

 [fonte]
«A tarde chegava. Volta o ciclope com os seus rebanhos. Abre e fecha a porta formada com o penedo. Trata dos arranjos da ceia, e mais dois companheiros, dois amigos, vejo sumir nas goelas do gigante. Quando o julguei satisfeito, aproximei-me e, pegando no odre de vinho, disse-lhe:
- «Ciclope, bebe este vinho, que já comeste carne humana demais. Trazia-o para outro fim, bebe-o tu, que te há de saber bem, e vai pensando no mal que fazes a esta ilha, onde certamente nenhum homem se atreverá a vir sabendo a desumanidade da tua conduta...
«Nem respondeu. Emborcou a taça a transbordar de vinho que eu lhe apresentava. Pediu mais. Bebeu segundo copo.
«Falou-me então quase afectuosamente, elogiou o vinho, perguntou o meu nome, e prometeu dar-me um presente, como mandam e exigem as boas tradições da hospitalidade. Ofereci-lhe outra dose de vinho. Quando, meio cambaleante, me abraça quase, disse-lhe com extrema doçura:
- «Ciclope, perguntas-me o meu nome. É muito conhecido. Mas já que o ignoras, vou-to ensinar, e trás depois de me entregar o presente prometido. Chamo-me NINGUÉM; meu pai e minha mãe chamavam-me assim, e todos os meus companheiros me chamam NINGUÉM.»
- «Ah! sim, respondeu o ciclope. Pois já que te chamam NINGUÉM, NINGUÉM será o último de vocês todos que eu devorarei. É esse o meu presente!»
«Ao acabar de dizer estas palavras, tombou para o lado, a cabeça dobrada sobre o ombro, ébrio de todo. Um sono profundo o toma, e ressona estrondosamente. Não perco um minuto: - vou buscar a estaca preparada, aqueço-a na cinza ardente, e estimulo a coragem dos meus companheiros. Juntamos as nossas forças, e no olho cerrado do ciclope enterramos o madeiro pontiagudo. Faço andar à roda, como penetrante verruma. E, antes mesmo que o ciclope acordasse, já o tínhamos cegado.
«Mas desperta por fim, e começa a bramir raivosamente, torcendo-se de dores. Afastámo-nos para longe, não fosse ele deitar-nos a mão! O monstro gritava por socorro, chamava aflitivamente ou outros ciclopes. Vêm todos, acodem todos, e do lado de fora do antro, fechado ainda, interrogam-no:
- «Que te aconteceu, Polifemo? Porque nos acordas no meio da noite? Quem te faz mal? Alguém atenta contra a tua vida?»
«O terrível Polifemo responde lá de dentro: - "Ai! meus amigos, é NINGUÉM que me mata, é NINGUÉM!" - «Então, dizem eles, se ninguém te faz mal, de que te queixas? O teu mal não tem remédio, e não lhe sabemos a causa. Tem paciência e sofre com resignação...»
«E voltaram para as suas cavernas, enquanto eu ria ao pensar na bela ideia que tivera, baptizando-me com o nome de NINGUÉM...
« Furioso, Polifemo arrastou-se até à entrada da caverna, empurrou o pedregulho que a tapava, e sentou-se no limiar, abrindo os braços. Imaginava ele que eu era bastante imprudente para fugir logo. Não, não era ocasião para tentar o destino! Por isso, inventei outro estratagema, que nos salvou.
«Tinha o ciclope, nos seus grandes rebanhos, bodes de forte corpulência. Escolhi os mais gordos, cuidadosamente, e atei-os três a três. Os do meio levavam cada um, agarrado à espessa e comprida lã da barriga, um dos meus camaradas. O bode mais gordo reservei-o para mim. Segurei-me também à sua lã, na mesma posição, e enchi-me de coragem. Mas ficámos quietos até ao amanhecer... Rompeu o dia, e o ciclope chamou o rebanho para o fazer sair. Os animais passavam ao alcance das suas mãos. Apalpava-os no dorso, acarinhava-os, e, por fim, deixava-os sair. Não desconfiou da nossa manha! Corriam os bodes, e lá iam com eles os prisioneiros de Polifemo! O último a sair foi o meu. Polifemo, que o preferia a todos, acariciou-o longamente e queixou-se-lhe da minha vingança:
- « Ah! soubesses tu, exclamava, onde pára o tal patife chamado NINGUÉM e decerto mo dirias. Se lhe deito a mão, esborracho-o e engulo-o num abrir e fechar de olhos. Ao menos, castigaria a infâmia que ele praticou, cegando-me e zombando da minha credulidade.»
(...)
E dentro em breve, sem que não tivéssemos uma última vez amaldiçoado o ciclope, que lá no alto ainda se lamentava furioso, gritando: "NINGUÉM! NINGUÉM!", o nosso barco sulcava o mar que gemia sob o compasso lento dos remos...

(Adaptação em prosa do poema de Homero por João de Barros, Livraria Sá da Costa)

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